Fonte:http://josecaldas.wordpress.com
O guarda que
'entregou' a guerrilha
José Caldas Costa
Joverci Emerich conhecia a Serra do Caparaó, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, como a palma de sua mão. Fechava os olhos e era capaz de descrever cada detalhe do relevo. Foi ele quem, no final de março de 1967, levou as tropas da Polícia Militar de Minas Gerais ao local onde os guerrilheiros do Caparaó montaram seu último acampamento antes de o movimento ser, definitivamente, extinto.
Nas semanas seguintes à prisão do primeiro grupo de guerrilheiros, que ousaram enfrentar a ditadura militar implantada a partir de 31 de março de 1964 no Brasil, a Serra do Caparaó virou praça de guerra, muito mais por pirotecnia das tropas da repressão do que por qualquer outro motivo.
Todos os guerrilheiros já estavam presos pela Polícia Militar de Minas, mas a serra foi bombardeada e invadida por mais de 3 mil homens de unidades do Exército de Minas, Rio de Janeiro e Espírito Santo, com o apoio da tropas das Polícias do Espírito Santo e Minas Gerais.
Nos anos seguintes, o Exército ocupou a região com sua Ação Cívica Social (Aciso), que recrutava profissionais civis, como médicos e dentistas, para dar atendimento de graça e ganhar a simpatia da população para o regime militar, que começava a endurecer, com a escolha de Arthur da Costa e Silva para suceder ao Marechal Castelo Branco. Um golpe dentro do golpe.
Para conseguir chegar com segurança ao último acampamento da “primeira guerrilha contra a ditadura”, os militares precisaram dos “olhos” de homens que conheciam bem a região, o principal deles o guarda florestal Joverci Emeric.
Ao ler este artigo, a primeira reação de quem combateu o regime militar será “odiar” Joverci, mas é preciso vê-lo no contexto em que vivia e que demonstro no meu livro “Caparaó – a primeira guerrilha contra a ditadura” (Editora Boitempo, SP, 2007), ganhador do Prêmio Vladimir Herzog e finalista do Prêmio Jabuti. Se querem saber, esse sentimento menor do ódio não é manifestado por nenhum dos ex-guerrilheiros que entrevistei para o livro.
Joverci era de tradicional família presbiteriana, como a maior parte dos moradores da cidade naquela época. Politicamente, era conservador e ignorante sobre os novos fatos da vida nacional. Levou a repressão ao acampamento da guerrilha achando que estava fazendo um grande bem à nação. Também, não tinha muita escolha.
Joverci era funcionário público, guarda florestal do Parque Nacional do Caparaó, criado em 1961. Mesmo tendo, involuntariamente, colaborado com a repressão, por muito pouco não foi envolvido pelo regime como “colaborador da guerrilha”, como muitos moradores das cidades vizinhas.
Quando o entrevistei para meu livro, Joverci já se convalescia de um derrame. Da janela de sua casa apontou com o dedo, na imensidade da serra, o local exato onde os guerrilheiros foram presos. Fiz que entendi para agradá-lo. Os meus olhos para a serra não eram e nem são como os dele, que ali viveu toda sua vida.
Deu-me valiosas informações e uma filha dele me cedeu fotos que aparecem no livro. Ingenuamente, ele perguntou-me: “O que eles queriam aqui mesmo?” A mulher dele, dona Maria, reclamou com o meu guia na região, pastor Leilson Almeida, que, sem saber, ela havia “cozinhado para bandidos”. Era assim que a guerrilha era vista, óbvio.
Apesar de colaborar com a repressão, Joverci teve sua conduta exaltada por todos os guerrilheiros. Amadeu Felipe, o comandante militar, disse-me que o guarda “teve um comportamento decente”. Avelino Capitani, que estava muito doente na época, confirmou-me a história do isqueiro, que Joverci mostrou-me e disse ter recebido dele. Foi um presente de Avelino no momento da prisão, quando o isqueiro caiu de seu bolso e, gentilmente, Joverci abaixou-se, apanhou o objeto e o devolveu ao guerrilheiro.
Pouco a pouco, os personagens dessa história, ocorrida entre 1966 e 1967 na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais e no nascimento do mais longo período de arbítrio da política brasileira, vão morrendo. Mas os fatos ficam para contar história.
Joverci morreu no último dia 23 de março, uma terça-feira, e foi sepultado no dia 24 de março, em Alto Caparaó-MG. Recebi a informação através de um dos meus leitores, a quem agradeço, e que é professor de história na região: Evaldo Dias Heringer.
José Caldas da Costa é jornalista, escritor e professor-voluntário no Departamento de Geografia da Ufes. Escreve neste espaço nos finais de semana. Contatos: caldasjornalista@gmail.com
http://josecaldas.wordpress.com/
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